segunda-feira, 16 de maio de 2011

Um "cordel" para "Amor e Revolução" - por José Lisboa Moreira de Oliveira

Estou acompanhando atentamente a novela "Amor e Revolução” do SBT. Pessoalmente acredito que o enredo está sendo bem construído e tem retratado com bastante realismo o que, de fato, foi a ditadura militar que tomou conta do Brasil entre 1964 e 1985. Em minha opinião têm faltado na televisão brasileira novelas que retratem, com realismo, momentos de nossa história e que possam mostrar aos jovens o que aconteceu realmente. Precisamos de mais novelas que falem da nossa história a partir da ótica dos vencidos e não segundo a opinião dos vencedores. O recurso da novela é muito bem acolhido pelo público e a televisão brasileira pode oferecer à nação um excelente serviço se souber aproveitar disso para comunicar valores.
Não sabemos ainda que rumo a novela vai tomar. Sílvio Santos, no passado, foi conivente com a ditadura. No seu programa dominical havia um quadro chamado "A semana do presidente” no qual ele mostrava e elogiava os presidentes ditadores. Esperamos que ele se mantenha no propósito de apresentar, através da novela, a face cruel da ditadura militar, assim como ela realmente foi. Vamos esperar que ele não ceda às pressões dos torturadores sobreviventes, os quais certamente não querem que a juventude tome conhecimento de suas brutalidades. Achei válida a atitude da emissora de não mais apresentar depoimentos, no final de cada episódio da novela, de representantes da ditadura. Não se pode dar a palavra a quem torturou ou aprovou o uso da tortura durante o regime militar. Nada justifica a utilização deste método cruel que contraria todos os princípios de humanidade e que há décadas vem sendo rejeitado por várias declarações, começando pela Declaração Universal dos Direitos Humanos.
Mas se a novela do SBT ainda consegue retratar a realidade e ajudar na reflexão sobre um período tenebroso da história do nosso país, outra novela, desta vez da Rede Globo, está gerando confusão e comunicando mentiras para a população. Optando por misturar ficção e realidade, a novela "Cordel Encantado” está falsificando uma página sangrenta da história do Brasil, particularmente da região Nordeste.
Ao apelar para a ficção, a novela da Rede Globo ofusca a verdade e não tema a coragem de dar "nomes aos bois”. Inventando nomes fictícios, países inexistentes, personagens irreais, ela desvia a atenção do telespectador e não colabora para que ele perceba o que de fato aconteceu no passado. Ao ver a novela, o público concentra sua atenção nas historinhas de amores dos personagens e não vai a fundo na reflexão sobre as verdadeiras questões.
No meu entender, para ser verdadeiramente educativa e contribuir para o crescimento da consciência crítica dos telespectadores, a "novela de época” da Rede Globo deveria apresentar os fatos da forma como eles realmente aconteceram. Deveria situar a novela no seu verdadeiro contexto e tratar, sem subterfúgios e disfarces, dos problemas que, naquele período, atormentavam o povo nordestino. Antes de tudo o latifúndio que impediu e ainda impede que a terra possa ser de quem realmente nela quer trabalhar e produzir alimentos. Depois a questão do coronelismo que mantinha as massas sob seu domínio e num regime de verdadeira escravidão.
O coronel nordestino era – e talvez ainda seja – a lei, porém ao mesmo tempo estava acima da lei. Mantendo um exército paramilitar formando por jagunços, a maioria deles fugitivos da justiça, o coronel se dava ao luxo de ditar a lei conforme lhe convinha. A partir de tal concepção, matava ou mandava matar ou surrar todos aqueles que se rebelassem às suas ordens. Podia, se quisesse, estuprar uma mulher e tudo ficava por isso mesmo. Para aumentar seu poder invadia terras de pequenos trabalhadores e as tomava sem dó e piedade. Às vezes propunha a compra ao pequeno proprietário, mas se este se recusasse vender o seu pedaço de chão o coronel mandava invadir sua propriedade e matá-lo impiedosamente.
Foi neste contexto que nasceu o fenômeno do cangaço nordestino. Homens cansados de serem injustiçados e explorados se rebelavam e partiam para a clandestinidade, formando os grupos de cangaceiros. Tentavam, deste modo, fazer justiça com as próprias mãos. Porém, os cangaceiros não eram bandidos, como a versão dos vencedores costuma pregar. Havia uma ética no grupo. Pobres, mulheres e crianças não eram maltratados e havia punição severa para quem não seguisse essa ética. O líder do grupo de cangaceiros normalmente exigia dinheiro dos ricos fazendeiros e comerciantes. E quando estes se recusavam, podia haver invasão de suas propriedades para tomar à força o que tinha sido solicitado. A violência só existia quando o rico resistia, ameaçava ou difamava o líder do cangaço. "É de assinalar que o cangaço surgiu, no enquadramento social do sertão, fruto do próprio sistema senhorial do latifúndio pastoril, que incentivava o banditismo, pelo aliciamento de jagunços pelos coronéis como seus capangas (guarda de corpo) e, também, como seus vingadores [...]. Nessas condições, são condicionamentos sociais do próprio sistema que alentaram e incentivaram a violência cangaceira” (RIBEIRO, Darcy. O povo brasileiro. São Paulo: Companhia das Letras, 2007, p. 321).
Neste contexto nasce também o fenômeno do messianismo, o qual não ficou restrito somente ao Nordeste, mas apareceu em outras regiões do país, como foi o caso de Contestado, na divisa entre Paraná e Santa Catarina, no início do século passado. O messianismo era um movimento de resistência de cunho eminentemente religioso. Normalmente se voltava contra as mesmas injustiças que motivavam as lutas dos cangaceiros. Na guerra do Contestado, por exemplo, o movimento de resistência era contra as injustiças provocadas pela construção da ferrovia que iria ligar São Paulo a Porto Alegre. O governo brasileiro havia confiado a construção da ferrovia a uma empresa inglesa. Como pagamento ofereceu-lhe uma légua de terra (cerca de seis quilômetros) de ambos os lados da estrada de ferro e por todo o percurso. Assim todos os que moravam neste espaço foram obrigados a se retirar. A população destes locais, liderada por um beato, reagiu, inclusive apelando para a luta armada.
No Nordeste o principal movimento messiânico foi o de Canudos, liderado por Antônio Conselheiro. Hoje, estudos científicos como o de Alexandre Otten (Só Deus é grande, São Paulo: Loyola) comprovam o seu caráter eminentemente religioso. Os coronéis do sertão não suportaram o movimento porque Antônio Conselheiro retirou deles a mão-de-obra barata. De repente os coronéis não tinham mais trabalhadores braçais para explorá-los em regime de verdadeira escravidão. Os fazendeiros notaram logo "o caráter intrinsecamente subversivo daqueles rezadores. O que estava atrás daquele surto de religiosidade bíblica era o abandono das fazendas pela mão-de-obra que as servia e que resultaria, fatalmente, na divisão das terras se o mal não fosse erradicado” (RIBEIRO, Darcy. O povo brasileiro, p. 323). Por esse motivo exigiram que o governo brasileiro acabasse com o movimento. O que de fato veio a acontecer no final do século XIX e de maneira brutal. O fim de Canudos foi trágico: uma verdadeira carnificina praticada pelo governo brasileiro da primeira República.
Ora, quem conhece bem o Nordeste, o cangaço e o messianismo sertanejo, não pode se conformar com a maneira ridícula e injusta com a qual a Rede Globo trata a questão na sua novela "Cordel Encantado”. Para quem conhece essas realidades é ridículo ver, por exemplo, os novelistas da Rede Globo criando uma trama entre um líder cangaceiro e uma duquesinha idiota de um reino imaginário. É ridículo e até cômico ver um filhinho de fazendeiro correndo atrás de uma simples moça do povo. É ridícula a trama na qual um rei fictício se apaixona por uma simples menina do povo. É completamente ridículo o papel do líder religioso Miguelzinho interpretado por um grande ator.
Com esse tipo de trama a Rede Globo falsifica os fatos reais, mente para a população e presta um desserviço à nação, uma vez que não aproveita do recurso da novela para narrar o que realmente aconteceu no passado. É claro que se entende a razão pela qual a emissora faz isso. Ela representa as elites brasileiras, aquelas que no Nordeste e em outras partes do Brasil sempre exploraram os mais pobres e pequenos. Narrar os fatos como de fato eles aconteceram, considerando inclusive a ótica dos vencidos, seria depor contra ela mesma e contra os interesses econômicos daqueles que a mantém com seus comerciais. Fazer uma novela de qualidade, na qual a história fosse contada sem falsificações, seria contribuir para a formação da consciência crítica e da cidadania. Seria cavar a própria sepultura. Por isso a direção da emissora opta por maquiar a verdade. As pessoas ficam envolvidas pelas bobagens, pelos romances idiotas e não se dão conta da realidade. Dessa forma ela possibilita que os coronéis de hoje continuem explorando o povo e este continue achando que tudo está às mil maravilhas.
Resta torcer para que o SBT leve a sério até o fim a sua novela e mostre com realismo a crueldade do regime militar que ceifou tantas vidas e nos negou a democracia por mais de duas décadas. Resta torcer para que o povo brasileiro possa ter cada vez mais acesso a uma educação de qualidade que lhe permita a formação da consciência crítica.
Paulo Freire, no seu livro Pedagogia da autonomia (São Paulo: Paz e Terra, 2009, 39ª edição) deixou dito: "Um dos piores males que o poder público vem fazendo a nós, no Brasil, historicamente, desde que a sociedade brasileira foi criada, é o fazer muitos de nós correr o risco de, a custo de tanto descaso pela educação pública, existencialmente cansados, cair no indiferentismo fatalistamente cínico que leva ao cruzamento dos braços” (p. 67). Entre os tantos descasos pela educação pública estão as concessões para as rádios e televisões. Tais concessões permitem que as emissoras montem uma grade de programação que deseduca e corrompe a consciência do povo. Está na hora de nos mobilizarmos para exigir que esse tipo de concessão pública seja controlado pela sociedade, de modo que tenhamos programas de qualidade, verdadeiramente educativos e não fantasiosos e falsos.

 José Lisboa Moreira de Oliveira é gestor e professor do Centro de Reflexão sobre Ética e Antropologia da Religião (CREAR) da Universidade Católica de Brasília

Fonte:UNE

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